O verdadeiro trigo
Como era o trigo que crescia 10 mil anos atrás e era colhido manualmente de campos não cultivados? Essa pergunta simples levou-me ao Oriente Médio – ou, mais precisamente, a uma pequena fazenda orgânica na região ocidental de Massachusetts.
Lá encontrei Elisheva Rogosa. Eli não é apenas uma professora de ciências, mas também uma agricultora orgânica, defensora da agricultura sustentável e fundadora da Heritage Wheat Conservancy [Preservação do Patrimônio do Trigo] (www.growseed.org), uma organização dedicada a preservar o cultivo de alimentos ancestrais e cultivá-los aplicando os princípios orgânicos. Depois de viver no Oriente Médio por dez anos, onde trabalhou no GenBank [banco de genomas], projeto jordaniano, israelense e palestino que tem como objetivo coletar antigas linhagens de trigo, quase extintas, Eli voltou para os Estados Unidos com sementes provenientes de plantas do trigo original, o trigo do antigo Egito e de Canaã. Desde então ela se dedica a cultivar os antigos cereais que sustentaram seus antepassados.
Meu primeiro contato com a sra Rogosa começou com uma troca de mensagens de correio eletrônico, que começou com um pedido que fiz de 1 quilo de grãos de trigo einkorn. Ela não conseguia parar de me passar informações sobre sua cultura singular, que afinal de contas não era simplesmente qualquer semente de trigo antigo. Eli descreveu o gosto do pão de einkorn como “substancioso, delicado, com um sabor mais complexo”, diferente do pão feito com a farinha do trigo moderno, que ela alegava ter gosto de papelão.
Eli fica irritada diante da sugestão de que produtos do trigo fazem mal à saúde, e cita as práticas agrícolas das últimas décadas, voltadas para o aumento da produtividade e a expansão do lucro, como a fonte dos danos à saúde de quem consome trigo. Ela vê a solução no einkorne e no emmer, com a restauração das gramíneas originais, cultivadas em condições orgânicas, como substitutas do moderno trigo industrial.
As diferenças entre o trigo dos natufianos e o que no século XXI chamamos de trigo seriam evidentes a olho nu. Os trigos originais einkorne e emmer eram formas “cascudas”, em que as sementes ficavam bem grudadas à haste. Os trigos modernos são formas “nuas”, em que as sementes se soltam com maior facilidade da espiga, característica que torna mais fácil e eficaz a debulha (separação dos grãos da palha) e que é determinada por mutações nos genes Q e Tg (gluma tenaz). No entanto, outras diferenças são ainda mais óbvias. O trigo moderno é muito mais baixo. Os trigais altos, ondulando graciosos ao vento, das idéias românticas, foram substituídos por variedades “anãs” e “semianãs” que mal chegam a 30 ou 60 centímetros de altura, mais um resultado de cruzamentos experimentais para aumentar a produtividade.
Um bom cereal que se perdeu?
Considerando-se a distância genética que se abriu entre o trigo atual e seus predecessores evolutivos, será que grãos antigos, como o emmere e o einkorn, podem ser consumidos sem provocar os efeitos indesejados causados por produtos de outros trigos?
Decidi pôr o einkorn a prova moendo um quilo de grãos para fazer farinha que, então, usei para preparar pão.
Também moí sementes de trigo integral orgânico convencional para fazer uma farinha integral. Fiz pão tanto com a farinha de einkorn como com a farinha convencional, usando apenas água e fermento biológico, sem acrescentar açúcares ou flavorizantes. A farinha do einkorn era muito parecida com a farinha de trigo integral convencional, mas, quando a água e o fermento foram acrescentados a ela, tornaram-se evidentes algumas diferenças. A massa, de coloração parda clara, era menos elástica, menos flexível e mais pegajosa que uma massa tradicional, além de lhe faltar a maleabilidade da massa de farinha de trigo convencional. Ela também tinha um cheiro diferente, mais parecido com o de manteiga de amendoim do que com o cheiro habitual de massa de pão. Ela cresceu menos que a massa feita com farinha de trigo atual, subindo só um pouco, em comparação com a duplicação de tamanho que se espera que ocorra nas massas de pão feitas de trigo moderno. E, como Eli Rogosa afirmou, o pão pronto tinha de fato um gosto diferente: mais intenso, com sabor de castanha, deixando um vestígio de adstringência no paladar. Eu podia imaginar esse pão feito do rudimentar einkorn na mesa de amoritas ou de mesopotâmios do século III a.C.
Sou sensível ao trigo. Por isso, em nome da ciência, realizei meu pequeno experimento: 100 gramas de pão de einkorn no primeiro dia contra 100 gramas de pão de trigo integral orgânico moderno no segundo dia.
Preparei-me para o pior, pois, no passado, minhas reações tinham sido bastante desagradáveis.
Além de simplesmente observar a reação aparente de meu corpo depois de comer cada tipo de pão, fiz também o teste da picada na ponta do dedo para verificar o nível de glicose do sangue. As diferenças foram impressionantes.
Nível inicial de glicose no sangue: 84 mg/dL. Nível de glicose no sangue depois de ingerir pão de einkorn: 110 mg/dL. Essa seria mais ou menos a alteração esperada após a ingestão de qualquer carboidrato. Mais tarde, porém, não houve efeitos perceptíveis – nada de sonolência, náusea, nenhum tipo de dor. Em suma, eu estava bem. Ufa!
No dia seguinte, repeti o procedimento, usando dessa vez 100 gramas de pão de trigo integral orgânico convencional. Nível de glicose inicial: 84 mg/dL. Nível de glicose após a ingestão de pão convencional: 167mg/dL. Além disso, logo comecei a sentir náuseas, e quase coloquei meu almoço para fora. O enjoo persistiu por 36 horas, e foi acompanhado de cólicas estomacais, que começaram quase imediatamente e duraram muitas horas. Naquela noite, o sono foi intermitente, embora repleto de sonhos vívidos.
Na manhã seguinte não conseguia pensar direito, nem entender os artigos de pesquisa que tentava ler, precisava ler e reler parágrafos quatro ou cinco vezes. Acabei desistindo. Comecei a me sentir normal novamente apenas na metade do dia seguinte.
Sobrevivi a meu pequeno experimento com o trigo, mas fiquei impressionado com a diferença nas reações ao trigo antigo e ao moderno, presente em meu pão de trigo integral. Sem dúvida estava acontecendo alguma coisa estranha nesse caso.
É claro que minha experiência pessoal não pode ser considerada um ensaio clínico. Mas ela levanta algumas questões acerca das diferenças em potencial, referentes a um período de 10 mil anos de distância, entre o trigo antigo, anterior às mudanças introduzidas pela intervenção genética humana, e o trigo moderno.
Fonte: William Davis, Barriga de trigo, p. 27, 28.